O garoto da janela
Abri meus olhos sem calma. Quantas horas dormira? Consultei o relógio, a provação: pouco mais de três horas. Gritos ecoavam em minha cabeça como num sonho mal cumprido, eu não conseguia me mover, tampouco fechar meus olhos; contemplava o meu teto em sua magnificência de nada-ser, nada-ter, mas dizer tudo num simples ato de se fazer notar quando gritos me invadirem e me acordarem às cinco da manhã.
Ergui meu corpo e me sentei, minha cabeça doía em observar a garrafa de vinho tinto vazia e sentir o gosto indecoroso de fumo da noite mal dormida: eles ainda gritavam.
Senti um nojo horrendo rasgar meu corpo das têmporas aos pés, e tocar minha alma. Eu não podia vê-los dali, mas eles faziam questão em se fazerem presentes, em me acordarem para vida. Os meninos prodígios, prontificados às cinco da manhã de uma quinta-feira gélida e indisperta para gritar o hino nacional e provar que ali estarão sempre ao nosso dispor. Pequenos militares brasileiros... Mas eu sabia toda a verdade: não passavam de mauricinhos exibicionistas clamando atenção; ou talvez, pobres diabos que precisavam, como eu em breve, suponhei, do "dinheiro-rápido-fácil", dar-lhes-ia certamente o crédito de estarem em plena madrugada acordados, semi-nus, gritando em minha janela, naquele clima de Barbacena da época; conseguia eu, quase lamentar por eles.
Foi então que decidi sofrer também: joguei longe as cobertas, escancarei as janelas completamente nu e pus-me a sussurrar de olhos fechados o hino nacional. Me uni heroicamente aos meus meninos prodígios e ergui meus braços como numa poética continência.
Não sei dizer por quanto tempo permaneci assim, se assustara alguma dona de casa descuidada que preparava humildemente o café da manhã. Sei que os pequenos milicos haviam parado de cantar fazendo com que eu, aos poucos, parasse também. O que se sucedeu talvez fosse um perdido enquanto as sombras mudavam os objetos dos lugares no prestes amanhecer, ou um contemplar de sol ressurgindo naquele considerado o céu mais limpo do mundo. Eu e minha privilegiada vista.
O que ficou em mim na verdade foi a consciência dos sofrimentos futuros, a certeza do amanhecer do dia e de todos amanheceres que eu seria obrigado a presenciar; a angústia de quem vive, incrustada em minha pele arrepiada por toda uma eternidade. Eu poderia ficar ali o dia todo, poderia ouvi-los gritando minha vida inteira, soferia por eles. Me doaria em favor de suas dignidades e seria eternamente o garoto na janela com medo do nascer do dia.

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