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Nada mais excitante um gato que dorme.
Dorme não, morre.
De língua pra fora, mordendo a ponta.
Ronronando a princípio, tiques nervosos e
de corpo, abandono.
Em posição fetal. Aos dois meses, filhote ainda?
Mas tal criatura estrábica.


Coloco reticências em tudo. Às vezes, as tiro relendo meus escritos para não passar por leigo, mas o fato é que não sei escrever. E, mesmo odiando correções, ainda assim, não sei escrever...

Tem um pensamento ali caminhando, três pontos, (pontinhos) três passos.


Tem culpa cá dentro e uma raiva não canalizada me tirando a razão, me fazendo imoral.
Quando, reconhecendo meu erro, não me lembro mais dele.


Tem culpa cá dentro.
Um gato morto ao meu lado.
E eu não sei escrever.
Eu.
Escrever.
Não.

Seu cheiro.
Seu pelo.
Apelo.
Silêncio.

Se pudesse, te esmagaria com minhas próprias mãos. O faria explodir, e possuir-te enfim. Eu seria. Matar-te-ia.


Liberdade nada mais é que instinto. Instinto que não reprimimos. Viver: comer, respirar, amar, matar e, por fim, morrer. Liberdade é ser bicho.

O Bicho na Montanha
Do negar o sonho para não ser
Contrariar o curso e desviar a rota
Da poeira que embruma o sentir, e esquecer
Enquanto a lua nos envolta
Sê o que ninguém ousou portar
Não beber
Não comer
Não falar
Sedento por confusão
Sedendo por vaidade os momentos da razão
Cais em profunda agonia
No cais da solidão
Faz da vida a fantasia
Dos otários que profanam de paixão
O Bicho, o meu lugar esquenta
Sabe que o tempo não importa
Celebrando, faz da tragédia a mais bela festa
Cumpre em dança minha derrota.

Da longa caminhada em que aqui cheguei
Se paro e morro, digo pelo caso de que me cansei
Tento, ao menos, o sonho do recanto
Encontrar Nele alento à todo o pranto.
Que a menina meu destino guarda em véu
Pois de desço viro presa pouco a pouco
Se me esqueço, assim permaneço, até o céu
Mas aqui preso, fico um tanto quanto louco
Do que se agarra para mostrar
Ter certeza de viver
Em pleno peito declarar efêmero pulsar
Balbuciantes palavras a perecer
Pois o instante acaba
O efeito logra
O eterno enferma
A verdade morta

Do Bicho à espreita
Tomado de volúpia fome
Sua, minha, nossa ceia
Consumi o mundo. E Ele me consome.

O Amor imita a Arte
Cuidado para não te perderes,
Conhecemos as ruelas
E as falas de cor!
A sombra de tua face
Menina,
Shakespeare desenhou em cada pormenor.
Mas não esqueças que teus perigos,
Neste sítio descoberto
Estudado
Decifrado em cada estado,
Reserva o prazer melhor:
Podes tudo
Sabes tudo
Não há limites resguardados:
Cuidado!
Entre na dança e seja a donzela
Esqueça os fantoches
A arte
A platéia.
Faça do rosto a aquarela
Guarde o repertório
Não se perca na idéia
Sorria e encante
Represente
Ame!

Ma Tante d'Honfleur
É domingo. É domingo há seis meses; em minha vida agora só há um dia na semana: um domingo cansado, cheio de podridões secretas, um pouco mais químico, mas mais barulhento em suas esperas. Ando esperando por muito há muito tempo, o tempo que virá e mudará os dias, as vidas e crenças. Espero pelos dias em que sinto estar mais próximo da certeza de ser, de ter, do nirvana utópico do mundo. No topo do mundo. Sinto que tenho esperado minha vida toda e na maioria das vezes não sei nem bem pelo que. Nada é mais monótono do que uma catástrofe: começo a me acostumar.
Uma vida de esperas incertas, quando não se há esperança não há em que se acreditar; vivo num mundo de dúvidas e indiferenças e o que posso dizer é que me cansei. Estou tão farto de esperar por um futuro que tão rápido se esvai, de não saber como fazer, o que buscar para entender e me conformar. Não há como me adaptar, esses valores não são meus, as ambições que não me afetam em nada. Nada do que vejo me interessa. Não sei o que quero, mas sei que não é nada disso. Eu só espero. Espero o domingo passar e levar consigo neste espasmo de tédio e solidão. Que venha uma segunda-feira desperta e uma segunda chance de viver novamente.

Domingo
O caminho de volta é sempre marcado por lembranças, desejos de encontros e reencontros com aqueles que deixamos para uma hora, exatamente a que se faz presente, regressarmos e nos lembrarmos que há sempre alguém que nos espera e nos deseja ver melhores, inovadores, mas com a mesma essência de quando nos deixaram partir. E nós, voltamos com a sensação de que nada terá mudado e que será tudo exatamente igual, como quando deixamos ficar. Talvez seja por isso que partimos.Mas o caminho propriamente dito, visto de dentro do ônibus à caminho de casa não era o mesmo, assim como as perspectivas: um trajeto enfadonho, na pressa de chegar. Que dizer desses ermos lôbregos que nos passam e não convidam a vista? Ainda que dessem mais importância a audição, como meus companheiros de viagem que se ocupam com radinhos à pilha, concentrados no jogo que está para começar, já conformados que não chegarão a tempo. Lá fora é domingo. Lá fora é Minas Gerais. E junto à paz dos campos mineiros, se aplica a paz do domingo mineiro.Nunca será tão domingo como aqui. E em sua obrigação dominical deixar que nada aconteça; os pastos cumprem o catequético dever de não florescer junto à pequena manada que descança na terra e se agasta em se deixar ficar.Com o tempo a gente se acostuma e se sente tocado por essa terra humilde, que nos acolhe com sua pureza. Nada é mais belo do que uma imagem sincera: a paisagem nos encanta por sua carência e simplicidade. E sentimos que o mundo todo se estende ali, naquele domingo pacato; naquela falta de cores que camuflam nossos pensamentos; num mundo cru e nu de cupins, bois e moscas. O que realmente falta ali é figura humana. Salvo por resquícios de uma nobre casinha branca, que de um atravancado fogão à lenha expele fumaça nos enchendo o peito e nos fazendo deliciar com imaginários pães e broas; decerto há uma amada vovó cochilando lá dentro à espera de seus assados.
Se o Brasil não se superou em larga escala, se as injustiças e toda a miséria não foram combatidas enquanto estive fora, em compensação, Minas Gerais permanece a mesma. As pessoas permanecem satisfeitas com o pouco, assim como os animais permanecem conformados com suas monotonias fáceis, o céu límpido e claro, e a modesta estrada empoeirada.Quem sabe não será desse fenômeno cotidiano e extraordinário de uma cidade do interior, que poderemos compreender melhor como as coisas se modificam ao nosso redor ao longo da vida, como mudamos em relação ao mundo e a nós mesmos, mas como numa deixaremos de ser um pedaço daquilo que nascemos e aprendemos a amar, um pedaço de terra castigada que nos mostra que não há prazer maior no mundo como retornar?À beira de uma árvore um boi solitário observa meu ônibus passando, levantando mais poeira do que de costume, talvez reparando com certa arrogância o carnaval que fazem aqui dentro no exato momento em que se escutam pelo rádio o gol feito por Robinho.Continuei, me retorcendo no banco, a reparar displicente o boi deitado e suspirei de vontade de me juntar a ele. Todos aplaudem e riem. E eu ficaria lá, ao lado do boi, dormindo no domingo de Minas Gerais.

O garoto da janela
Abri meus olhos sem calma. Quantas horas dormira? Consultei o relógio, a provação: pouco mais de três horas. Gritos ecoavam em minha cabeça como num sonho mal cumprido, eu não conseguia me mover, tampouco fechar meus olhos; contemplava o meu teto em sua magnificência de nada-ser, nada-ter, mas dizer tudo num simples ato de se fazer notar quando gritos me invadirem e me acordarem às cinco da manhã.
Ergui meu corpo e me sentei, minha cabeça doía em observar a garrafa de vinho tinto vazia e sentir o gosto indecoroso de fumo da noite mal dormida: eles ainda gritavam.
Senti um nojo horrendo rasgar meu corpo das têmporas aos pés, e tocar minha alma. Eu não podia vê-los dali, mas eles faziam questão em se fazerem presentes, em me acordarem para vida. Os meninos prodígios, prontificados às cinco da manhã de uma quinta-feira gélida e indisperta para gritar o hino nacional e provar que ali estarão sempre ao nosso dispor. Pequenos militares brasileiros... Mas eu sabia toda a verdade: não passavam de mauricinhos exibicionistas clamando atenção; ou talvez, pobres diabos que precisavam, como eu em breve, suponhei, do "dinheiro-rápido-fácil", dar-lhes-ia certamente o crédito de estarem em plena madrugada acordados, semi-nus, gritando em minha janela, naquele clima de Barbacena da época; conseguia eu, quase lamentar por eles.
Foi então que decidi sofrer também: joguei longe as cobertas, escancarei as janelas completamente nu e pus-me a sussurrar de olhos fechados o hino nacional. Me uni heroicamente aos meus meninos prodígios e ergui meus braços como numa poética continência.
Não sei dizer por quanto tempo permaneci assim, se assustara alguma dona de casa descuidada que preparava humildemente o café da manhã. Sei que os pequenos milicos haviam parado de cantar fazendo com que eu, aos poucos, parasse também. O que se sucedeu talvez fosse um perdido enquanto as sombras mudavam os objetos dos lugares no prestes amanhecer, ou um contemplar de sol ressurgindo naquele considerado o céu mais limpo do mundo. Eu e minha privilegiada vista.
O que ficou em mim na verdade foi a consciência dos sofrimentos futuros, a certeza do amanhecer do dia e de todos amanheceres que eu seria obrigado a presenciar; a angústia de quem vive, incrustada em minha pele arrepiada por toda uma eternidade. Eu poderia ficar ali o dia todo, poderia ouvi-los gritando minha vida inteira, soferia por eles. Me doaria em favor de suas dignidades e seria eternamente o garoto na janela com medo do nascer do dia.

Nirvana com Noite

Reabri meus olhos sem calma
Pois num minuto de dor turvo
E senti, entrando em minha alma
Enquanto vencendo o sol recurvo

O pêndulo de acentos graves
Tocava atroz o meio-dia
O céu levava as aves
Num mundo que se entorpecia

Dorme ó meu coração!
E em sonolência bruta
Cante em ti esta canção
Que por hora, ninguém escuta

Ó leva-me contigo, doce esperança
Engole o tempo enfim desta vida diminuta
Acabe com este gosto que nada alcança
Do fundo abismo que me enluta

Ó leva-me contigo, nirvana em noite abrupta!